Brasília: uma Ilha de Poder Estatal!

Foto - Post - Ricardo Bordin - Poder centralizado em Brasília

O que a vida de um carioca tem em comum com a de morador de Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai? Não sabe? Então, talvez seja mais fácil se propusermos uma comparação entre a vida de um brasileiro de Boa vista e a de um gaúcho de Uruguaiana? Ainda não? Pois acertou quem respondeu praticamente nada! E não poderia ser de outra forma: em um país de dimensões continentais como o Brasil, é natural que as realidades experimentadas no cotidiano dos habitantes de regiões tão distantes umas das outras – e tão distintas em suas culturas, dialeto e, principalmente, indicadores econômicos e sociais – sejam de tal forma desiguais que demandem diferentes formas de gerir e administrar essas localidades, correto? Não no Brasil: aqui, a regra é a concentração de poder na União Federal, em detrimento dos poderes locais, os quais, conhecedores das características regionais, poderiam decidir com muito mais propriedade a respeito da elaboração de leis e da destinação de recursos. Poderiam.

Essa idiossincrasia começa a tomar forma com as regras da competência tributária, as quais definem qual parcela dos impostos cobrados dos cidadãos deve ser retida por cada ente federado. Além disso, o chamado Pacto Federativo, também conhecido como Federalismo Fiscal, definido na Constituição da República Federativa do Brasil (artigos 145 a 162), define mecanismos de partilha da receita dos tributos arrecadados entre os entes da Federação, sendo exemplos desses mecanismos os Fundos de Participação dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios, e os Fundos Constitucionais de incentivo ao desenvolvimento regional (Fundos Constitucionais do Norte, Nordeste e Centro-Oeste). O resultado prático de tais regras constitucionais: a União Federal recolhe em torno de 22% do PIB, ao passo que os estados ficam com 11%, e os municípios com 4%. Percebe-se facilmente que a União fica com uma fatia imensa de toda a riqueza produzida no país, afastando, destarte, os cidadãos pagadores de impostos do destinatário da maior parte desses recursos.

 A consequência mais perversa dessa distorção é que alguns estados produzem muito, mas recebem pouco em retorno da União Federal (confira tabela abaixo, de 2013), de tal maneira que, ainda que um determinado estado, por exemplo, dobre sua produtividade agrícola ou industrial, boa parte desse aumento de produção irá para as mãos da União, que não necessariamente efetuará repasses da mesma monta a este estado. Esta intervenção anacrônica da administração federal na economia, que não premia produtores locais que melhoram o desempenho de suas atividades econômicas, torna desinteressante, em certa medida, a busca por mais produtividade, uma vez que esses produtores não irão perceber a maioria da riqueza gerada por sua própria região sendo aplicada para nela promover melhorias (e, nada mais justo, para alavancar seus empreendimentos).

Tabela - Retorno de tributos por estado X Tributos pagos

E antes que algum desavisado me acuse de estar sendo injusto com os estados deficitários – aqueles com resultado em azul na tabela cima – impende aqui traçar um paralelo com a situação de alguns países Africanos que recebem ajuda financeira de forma sistemática. Nas palavras do economista queniano James Shikwati, “o dinheiro de fora faz mal ao continente: financia uma burocracia mastodôntica e faz a fortuna de governantes corruptos.” Ele também argumenta que, mesmo quando a ajuda chega na forma de doações de comida, ela só presta para prejudicar os agricultores locais. Pior: tudo isso estimularia no povo uma mentalidade pedinte, que acabaria com qualquer espírito empreendedor. Duvido que alguém discorde que a mesma linha de raciocínio aplica-se perfeitamente ao Brasil e sua antiga tradição de repassar muitos recursos para estados mais carentes sem que a situação socioeconômica dos habitantes desses estados melhore de forma significativa.

Ademais, esse “meio campo” entre o que é produzido por estados e municípios, e o montante a eles destinado, costuma colocar estes entes em relação de submissão em relação à União, fazendo com que fiquem devendo favores a políticos de Brasília, caso queiram que o Executivo Federal execute, por exemplo, obras de infraestrutura em seus portos e aeroportos – fazendo uso, no caso, de tributos pagos por produtores desses mesmos entes. Desnecessário dizer que “dever favores” e “cometer atos de corrupção” são práticas que costumam andar de mãos dadas.

Como contraponto a esta incongruência, na Confederação Helvética (Suíça), a confederação retém apenas 1/5 de tudo que é arrecadado na forma de tributos. O restante fica todo com os “cantões” (províncias), os quais, inclusive, decidem que percentual de seus orçamentos será aplicado em cada área, como saúde ou educação – como recomenda a lógica, uma vez que cada um dos cantões apresenta peculiaridades e graus de desenvolvimento diversos (ao contrário do que ocorre no Brasil, onde a União define percentuais mínimos a serem aplicados de maneira uniforme por todos os estados membros, restando muito pouca margem de discricionariedade para a administração local). E isso que estamos falando de um país do tamanho de Sergipe!

Já no Brasil, em meio a sanha de concentrar o poder em Brasília e de tirar a autonomia dos estados, até mesmo a famigerada “guerra fiscal” do ICMS foi declarada inconstitucional pelo STF, sendo que esta consistia na prática de conceder benefícios tributários para atrair empresas – e empregos. Os estados que normalmente adotavam este expediente eram os de atividade econômica menos pujante, e consistia em um recurso extremamente válido na busca pelo desenvolvimento regional, inclusive para ampliar a movimentação de seus portos e aeroportos.

Mas não há motivo para restringir esta análise a questões tributárias. No Brasil, consoante o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho (ufa!). Muito diferente do que ocorre nos Estados Unidos, onde cada estado resolve se vai adotar a pena de morte, se a comercialização de maconha deve ser liberada, dentre outras decisões de suma importância que são tomadas por cada estado, levando em conta sua realidade local. Ou alguém duvida que em algumas regiões de nosso país, onde a violência alcança níveis de faixa de Gaza, seria importante adotar sanções penais mais drásticas? Ou que em outras, onde os índices de desemprego são demasiadamente altos, a burocracia para abrir uma empresa deveria ser reduzida a zero (bom, convenhamos que este último exemplo poderia ser aplicado ao país como um todo)?

Aliás, como a competência legislativa de estados e municípios é muito reduzida no Brasil, não há o menor cabimento a quantidade de deputados estaduais e vereadores que são eleitos para criar leis nestes entes. Talvez 1/5 do número atual conseguisse dar conta do serviço – não surpreende a baixíssima frequência dos parlamentares às sessões legislativas, ou a prática corriqueira de assistir “filmes educativos” no decorrer destas: não há o que fazer mesmo. Desperdício de recursos públicos dos mais graves. Todavia, em 2009, o congresso nacional, incrivelmente, aprovou a possibilidade de aumento no número de vereadores do país – talvez estivesse difícil pensar em nomes de ruas para nossas cidades. Felizmente, moradores de diversas cidades protestaram e impediram que suas câmaras municipais aprovassem acréscimos no número de vereadores.

É claro que alguém poderia justificar a distinta distribuição do poder nos Estados Unidos e na Suíça pelo fato de que se trata de confederações. Sendo que o federalismo é cláusula pétrea de nossa carta magna, não poderíamos adotar modelo semelhante, a não ser em caso de uma improvável convocação de nova assembleia constituinte. É triste e forçoso, neste caso, concordar, pois o modelo concentrado, como adotado em nosso país, causa sérios problemas, como já demonstrado, e o mais grave deles, a meu ver, é que ele privilegia a mentalidade paternalista em detrimento da meritocracia por parte de estados e municípios – isto sim, um grande prejuízo para o Brasil.

Antecipo-me também ao possível contra-argumento de que, somados os desvios de verbas de todas as prefeituras e estados do Brasil, totalizaríamos valores superiores até mesmo, quem sabe, aos do Petrolão, e disponibilizar-lhes mais verbas poderia agravar o problema. A solução: fortalecer Tribunais de Contas e Ministérios Públicos estaduais, cuja função é, entre outras, impedir tais práticas. E pronto. Não podemos aceitar tal justificativa para manter o poder concentrado em Brasília, até mesmo porque é sabido que a transparência de gastos e contratos públicos não é o forte da União Federal também – nem de longe.

Entendendo como cada decisão tomada em Brasília afeta profundamente a vida dos cidadãos até mesmo dos rincões mais longínquos do Brasil, e assistindo a uma sessão plenária da câmara dos Deputados ou do Senado (verdadeiras “feiras do peixe” em dia de votação), fica fácil entender porque nosso país vai ladeira abaixo há tanto tempo. No mesmo sentido, não podemos perder de vista que concentrar tanto poder na caneta do chefe do Executivo Federal é extremamente desaconselhável, uma vez que relega o destino da nação aos rompantes de uma única pessoa e seus interesses partidários.

Descentralizar o poder da União para estados e municípios redundaria, portanto, em um efeito extremamente benéfico: tornaria menos importante a figura do Presidente da República, na medida em que a este não  seria facultado tomar, de forma unilateral, tantas decisões de interesse nacional. Precisaríamos eleger, por outro lado, com muito mais atenção, prefeitos, governadores e demais agentes políticos estaduais e municipais, o que é algo extremamente desejável, já que, como estamos muito mais próximos dessas autoridades, torna-se muito menos complicado exigir delas o atendimento do interesse público – o que coincide com a justificativa para implantação do voto distrital, aliás. É o efeito “bafo no cangote”, pra encerrar de forma menos rebuscada!